quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter

Era um dia de calor em São Paulo, muito trânsito na cidade e o habitual barulho na rua.
Maíra estava chegando ao trabalho e, embora estivesse adiantada, andava depressa rumo à sala de reunião onde apresentaria seu trabalho tão precioso. No entanto, antes que as portas automáticas se abrissem na entrada do grande prédio de vidro onde Maíra trabalhava, ela sentiu-se presa. “Ups” murmurou sem saber porque não avançava, algo tinha acontecido no seu pé. Olhou para baixo e logo notou, o seu salto enganchara no ralinho do chão e ela estava agora, entre sair, descalça, ou abaixar-se pra tirar o sapato do ralo. Escolheu a segunda opção, deixou os papéis e o computador no chão e usou as duas mãos para soltar seu lindo escarpan do ralo imundo ao qual se prendera. Demorou um pouco, a saia estava justa, a meia-calça ameaçou romper-se quando...”ai!” saiu... Ela se refez do calor, calçou o sapato, pegou as coisas, olhou em volta pra que confirmar que ninguém a vira, e seguiu pra confortável sala de reunião onde o frio reinava soberano, ignorando o calor de 30 e poucos graus de São Paulo.
Maíra ligou o computador, conectou a ele o canhão, checou que a imagem estava boa, respirou fundo, e antes que pudesse notar que ainda estava ofegante, a primeira pessoa chegou. “Hi, how are you?”, as duas moças jovens e elegantes cumprimentaram-se cordialmente, enquanto outras pessoas iam chegando, sendo apresentadas à Maíra e se acomodando em seus lugares, abrindo as garrafas de água, ou servindo-se do coffe-break. Maíra desejou que elas fossem pessoas boas, ao menos. Podiam ser burras, tontas, lindas, horrorosas, importantes ou não, mas que fossem pessoas boas para que respeitassem as dificuldades que Maíra pudesse ter, numa apresentação de tanta importância, em uma língua nova, com tantas culturas diferentes.
Não demorou muito para que a mesa de mármore estivesse cheia, todos em silêncio, ouvindo a moça falar, no seu melhor inglês, sobre o projeto que gerenciava com tanto empenho, ainda que sem paixão.
Enquanto falava, Maíra pensava no quanto era importante e competente, para ocupar tão cedo aquele posto, dissertar tão lindamente para tantas pessoas, Maíra estava envaidecida por demais, até para notar se o que dizia tinha sentido ou não. No entanto, uma das inglesas a trouxe para realidade: “I don`t agree with you. This is not possible in this company...” A senhora de azul disse, de forma agressiva e brusca, discordando de Maíra e expondo a fragilidade de seu inglês. Maíra tentou explicar, explicou até, uma ou duas vezes, antes de ser interrompida de novo. Mais alguém que não acreditava nesse trabalho e questionava o que essa jovem brasileira de rosto tão liso e cabelos tão negros teria a ensinar para esses homens e mulheres que vinham do primeiro mundo em busca de preços baixos apenas... Maíra respondeu, engasgou no meio da frase, não conseguiu continuar o raciocínio em inglês, falou singular o que deveria ter sido plural, ai, ou teria sido a preposição eu não era essa? As pessoas tentaram falar no lugar dela, e uma confusão se instalou. Maíra tentou sugerir um intervalo, mas alguém tomou o seu lugar e começou a tentar explicar os objetivos dessa reunião. Resolveram apresentar o material até o final e depois teríamos as dúvidas. Maíra o fez, já sem vontade, já cansada, já notando mais uma vez, o que sempre soube, aquele não era o seu lugar. Ou era? Enquanto pensava uma outra pessoa falava em nome do Brasil, tentando acalmar a situação.
Foi nesse momento, quando Maíra ainda buscava acreditar que tudo voltaria ao normal, afinal ela era uma executiva de tanto sucesso e competência, que entrou na sala três pessoas, de branco, carregando as bandejas para renovar o coffe-break. Eram duas mulheres carregando as frutas, e um homem que carregava as jarras de café e de chá, eles entraram rindo de qualquer coisa, falando baixo sobre alguma coisa que acontecerá no elevador, mas ficaram sérios quando perceberam que a jovem executiva os olhava atenta. Ficaram sérios um segundo, até que algum deles riu baixinho e contagiou os outros dois. Os três garçons riram abafado, puseram suas bandejas na bancada e, se trombaram, riram mais e, logo que saíram, Maíra ainda ouviu a explosão de risada que houve, imediatamente após a porta ter se fechado...
A reunião continuava mas, Maíra, que já estava sentada, não conseguiu mais prestar atenção nos slides que ela mesma prepara noite adentro, nas últimas semanas. Maíra, a executiva bem sucedida, que ganhava bem e vestia-se com as melhores roupas, invejou aqueles garçons. Desejou, de repente, que pudesse ser apenas uma garçonete, que pudesse usar tênis, vestir aquelas redinhas no cabelo, levar comida para os lugares, roubar uma ou duas calipsos, rir com os seus colegas de trabalho e ganhar mal. Sim, ganhar pouco e estressar-se pouco, era isso que Maíra queria, se alguém fizesse a ela essa proposta.
Mas não, não era nesse mundo que ela vivia... Era preciso estressar-se, gritar, insistir, persistir tanto, para que as empresas ricas ficassem ainda mais ricas e que os funcionários pobres ficassem ainda mais pobres... Era essa, basicamente, o trabalho nobre a que Maíra dedicava sua juventude, seus dias de verão e de inverno. Alguém a chamou: “Maíra”, disseram com o forte sotaque americano, “claro!”, ela se dispôs, levantou-se, ajeitou-se e respondeu polidamente, demonstrando com muita competência ser aquilo que ela nunca, nunca seria...

2 comentários:

Unknown disse...

NOSSA! Que máximo! Falo sobre algo parecido num dos meus posts... já volto aqui e mando link, caso queira dar uma olhada.


Beijo!
Ed.

Unknown disse...

http://ultrasensitive.wordpress.com/2007/11/05/qual-o-preco/


Aí está! Diferentes em estrutura, mas minha intenção, (ainda que em
1ª pessoa) foi a mesmíssima!


Beijão!