domingo, 4 de maio de 2008

Da loucura do mundo

Saí aqui. Com essa daí.


O mundo está louco." Foi durante um almoço, que, de repente, meu colega de trabalho soltou essa pérola, tão comum, quase corriqueira. Ninguém deu muita bola pra ele e a conversa continou normal. Antes de dar outra garfada na salada, no entanto, ele murmurou mais uma vez: “Louco. O mundo está louco...”

Embora ninguém tenha notado a frase solta do meu conhecido, eu me ausentei daquela conversa banal por alguns segundos e me ative ao que ele dissera. O mundo está louco. Louco de pedra. Maluco, absurdo. O mundo, meus amigos, pirou. Isso me pareceu, de repente, a coisa mais sensata que ouvi nos últimos meses. A coisa mais sensata entre todas. Por um instante, me senti acolhida e compreendida por aquele colega de trabalho, cujo nome eu nem me lembro bem. Mas ele me compreendia. O mundo está louco.

Eu tentei dizer isso para o meu marido, alguns dias antes, mas ele não concordou. Estávamos no trânsito que pegamos quando voltamos do nosso trabalho e, depois de uma hora dentro do carro, quando ainda não estávamos nem na metade do caminho, eu murmurei: “Está tudo errado”. Ele não entendeu. Tentei explicar que não poderia ser certo ter uma multidão ali, aprisionada entre os carros, todos absolutamente parados, por mais de uma hora, passivos, sem que ninguém se rebelasse. Sem que ninguém saísse do carro aos berros, sem que ninguém subisse no capô, sem que ninguém, nenhum carro ao lado, estivesse se descabelando.

Meu marido achou que a louca era eu e iniciamos uma disucssão. Antes de chegarmos na metade da discussão, eu me pus a chorar... Chorei porque me senti, subitamente, incompreendida. Como poderia ser normal passar tanto da vida ali, entre os carros? Como não pedimos demissão, como não largamos tudo, como não vamos morar em uma casinha de sapê, na beira de qualquer rio? Ou então, que seja, como não vamos morar em uma árvore, na selva, como éramos antes, porque talvez fôssemos mais sentatos quando éramos gorilas?

Não, claro que não, porque isso é ser louca. A resposta estava clara, eu era louca porque eu, chorando pelas horas que perco no trânsito, sou a fora da curva, a estranha, a maluca, claro. O normal é aumentar o som, cantarolar, tavez xingar com os vidros fechados, nem sei. Nem tenho como saber, porque eu sou pirada, meus amigos. Louquinha. De pedra.

Depois aconteceu de novo, um dia desses, quando uma amiga me confidenciou que pôs botox. Na testa. Disse que é uma agulha fina, lá, direto na testa. E incha, dói, fica vermelho, roxo, nem lembro. Parei de ouvir em algum momento da conversa e refleti que minha amiga, tão querida pobrezinha, enlouquecera. Claro, só uma pessoa louca poderia se mutilar assim e, ainda por cima, pagar uma fortuna por isso. Minha amiga é jovem, linda, rica, mas é louca, a coitada. Eu não soube como dizer isso a ela, mas, em seguida, quando o restante das amigas começou a contar das plásticas, das agulhas, dos cortes, eu fiquei sem-graça e notei, mais uma vez, que eu era a louca.

Meu Deus, eu sou absolutamente louca. Sou louca de aturar a minha barriga molenga sem fazer nada contra isso. Sempre achei que barriga normal era barriga assim, meio salientezinha, como a natureza a fizera, oras. A natureza não produz barrigas chapadas, não. São os exercícios, os pesos, os remédios, as tesouras que as fazem. A natureza faz aquela barriguinha que, com o tempo, vai ficando curva, mole, barriga das loucas essa, né? Sim. Essa é a barriga das loucas, portanto, soy jo. Sou louca de comer um balde de M&M, sou louca de permitir, absolutamente passiva, que meus peitos caiam desenfreadamente. Sou louca, mais uma vez confirmei isso.

E depois ainda teve o caso da menina que os pais mataram - ou sei lá se mataram. Depois os loucos que ficam na frente do prédio deles, jogando pedras. Ah! não, louca sou eu que ainda penso que, quem sabe, os pais podem afinal não ter matado a própria filha.

E tem o padre que voou pendurado à balões, tem os políticos, tem o cara que teve filhos com a própria filha (foi isso mesmo?), tem os roubos, as mentiras, as traições, as crianças fazendo malabarismo nos sinais, meu Deus, como eu me sentia sozinha às vezes, até aquele momento. Até aquele momento em que um quase desconhecido trouxe a mim a frase que era um bálsamo. Era isso: o mundo está louco. Eu não, eu não. Eu estou livre, eu sou normal. Estou por fora, sou gordinha, enrugada, velha, estressada, mas, ai, ufa, sou normal. O mundo, esse sim, está louco. Piradão. Mundo-louco. Eu-normal.
Alguém aí me acompanha?

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Cinderela - depois do fim.

Então. Assim que o “The End” saiu da tela, ela respirou fundo, sorriu doce e beijou o príncipe. Nossa como estava cansada do baile, da fuga, da abóbora, de tudo.
Ainda assim, ela fez a malinha dela para viver no palácio que aquelas irmãs e a madrasta má ninguém merece né?
Foram juntos para o palácio, ela ficou encantada com o piso, o quarto, a roupa de cama, tudo, tudo.
Ele, o principe (será que príncipe nunca tem nome?) pediu aos serviçais que arrumassem a malinha da Cinderela, mas ela ficou envergonhada, porque afinal de contas só tinha uns vestidinhos velhos. O princípe, ao notar o constrangimento de sua amada, mais do que depressa tirou umas notas do bolso (não existia cartão de crédito ainda) e entregou tudo para a linda Cin, como ele já a chamava.
Cin comprou tudo o que queria, voltou para o palácio e, teve uma noite de amor enlouquecedora com o príncipe. Prin, como ela o chamava.
Eles estavam ótimos, até que, na semana seguinte, apareceu no palácio a madrasta, aos prantos, dizendo que estava passando fome no casebre em que vivia, enquanto ela, a enteada má, vivia no luxo, cheia de riquezas. Cinderela ficou muito brava com a Madrasta, mas, antes que mandasse embora, a velha senhora começou a chorar, e a dizer que ela sempre amou a Cinder, e que só precisava de umas poucas moedas emprestada, devolveria assim que pudesse e tal. Cin não aguentou e cedeu. Entregou para a Madrasta um punhado de moedas que pegou do cofre do príncipe, e ela foi embora feliz se fazendo de vítima como sempre fez. Nesse mesmo dia, Prin ligou dizendo que ia chegar mais tarde.
Cin ficou lá, de bobeira pelo palácio, e começou a notar que aquilo estava uma imundice! As empregadas ficavam de papo o dia todo! Cin resolveu chamar todas elas, fez um quadro dizendo o que tinham que limpar, explicou para cada uma que precisavam cuidar melhor do palácio, que ela não gostava de poeira e nem de ver cabelos no banheiro. Uma das empregadas disse que não dava tempo de fazer tudo o que ela queria, afinal de contas o palácio era enorme, não tem condições assim. A moça ficou sem-graça, não sabia como tratar os serviçais e disse que ia ver isso mais tarde, com o príncipe, mas, tentando ser dura, afirmou que assim não não podia ficar.
Já exausta, Cin caiu em seu leito nupcial e só acordou de madrugada com um beijo doce de seu príncipe que chegara tarde, porque tinha muitos afazeres como príncipe do reino.
Mas o dia clareou o Prin já estava de pé, saindo do banho, dizendo que tinha reuniões importantíssimas e que almoçariam com seu pai, o rei. Cin, ainda sonolenta sorriu de alegria. Ah o rei e a rainha... Seus amados sogros!
Ela passou a manhã lavando o cabelo, e, na hora combinada atravessou o palácio até a ponta em quem vivia a rainha. Apesar de ser tudo o mesmo palácio, as distâncias eram enormes! Cin se arrependeu de não ter pedido uma carruagem e chegou com os pés em frangalhos por causa do sapatinho de cristal que usara.
A sogra, sempre muito cordial a cumprimentou, o sogro fez um breve aceno com a cabeça, seu esposo a beijou delicadamente na testa e sentaram-se todos à mesa. Almoçaram em silêncio, o Prin falou alguma coisa de seus negócios e Cin resolveu contar que falara com os empregados, e que eles não limpavam o palácio tão bem quanto deveriam. Ao terminar de contar, a sogra, sorriu e disse de forma muito gentil: Cin querida, a vida de esposa é uma tarefa doce, porém árdua. Você vai precisar ver isso com os empregados! Quando eu comandava todos os sub-palácios, o ambiente estava sempre impecável, lembra meu bem? Ela olhou para o rei, que concordou enquanto chupava a sopa da colher.
Cin ficou sem-graça. O que a sogra quis dizer? Será que ela estava dando uma indireta? Não, imagine. A sogra era uma pessoa muito querida, nunca faria isso.
Terminado o almoço Cin voltou aos seus aposentos e descansou os pés que tinham bolhas por todos os lados.
A noite, quando o marido chegou e a viu deitada, com a roupa do almoço, logo exclamou: Meu bem! Você está deitada desde aquela hora? Não é para menos que o palácio está imundo, você não falou com os empregados não é querida? Antes que ela respondesse, Prin continuou: E esses seus pés? O que é essa casca no calcanhar? Cin escondeu os pés entre as mãos: Nada querido, nada. Me desculpe. Vou pedir que sirvam seu jantar.
Cin ainda estava cansada, os pés latejavam, mas ela pediu o jantar e foi tolerante, enquanto seu marido reclamava do trabalho, dos plebeus, e, quando terminaram, antes de dormir, ele pediu se ela poderia lhe coçar as costas...
Já fazia quase um mês que Cin tinha se tornado uma princesa, e ela era praticamente uma nova mulher. Administrava o palácio com sabedoria, os empregados agora trabalhavam duro, ela mesma lavava algumas das roupas mais delicadas do príncipe, coordenava a cozinha, selecionava as flores e anotava todas as necessidades extraordinárias para checar com o príncipe nos finais de semana. Ele, por sua vez, estava cada dia mais ocupado. O reinado ia de vento em polpa, mas o rei, envelhecendo, passara ao filho muitas de suas atribuições. Ainda assim, eles viviam dias felizes no casamento, Cin fazendo as vontades do marido e Prin sendo doce com ela. O que mais uma princesa poderia querer da vida?


Foi numa manhã de sol, o dia estava brilhando quando Cin saiu de seus aposentos e já foi avisada que a Madrasta estava na porta, a sua espera.
Cinderela respirou fundo e caminhou até a visita que, dessa vez, trazia as filhas a tiracolo.
Oi querida! Disseram as duas... Cin as olhou bem, sorriu meiga e as convidou para uma xícará de chá. As meninas, dessa vez pareciam incrivelmente diferentes. Tomaram chá, contaram da vida, falaram de bolsas e sapatos e trataram a Cin tão bem, que ela quase gostou das irmãs postiças um pouquinho. Se segurou, porque já era uma princisa escolada, mas, no final do chá, deu de presente às visitas alguns de seus vestidos mais bonitos, que estavam novos e ocupavam lugar no armário, já abarrotado de roupas. As meninas agradeceram e, desse dia em diante, começaram a visitar a princesa ao final de cada nova estação... O princípe começou a se incomodar com essa amizade. Dizia sempre que Cin era uma menina ingênua, que não via que era só interesse, e que dinheiro não nascia em árvore para ele sustentar, agora, a vaidade de outras 3 mulheres, ainda mais espertas e necessitadas que sua própria esposa. Cin, sabida, rebatia que não era bem assim, que ele estava sendo egoísta, que tinha todo um palácio para eles e ficava controlando meia-dúzia de vestidos? Isso não tinha sentido. Além disso, a família dele também não era flor que se cheirasse. A rainha, sempre tão bondosa, já tinha tirado de Cin duas das melhores empregadas, de forma que estava difícil contratar outras boas, mas ela se esforçava para agradar a sogra, em nome da boa convivência entre todos. Ele tornava a reclamar e ela perguntava, onde estava o príncipe do início que fazia todas as suas vontades e queria apenas que ela estivesse feliz. O príncipe, quando ouvia essa conversa, ficava furioso e dizia para parar com isso, que ele era o mesmo, a amava, mas ela também podia ser mais tolerante com a família dele, e podia parar de implicar com a roupa que ele deixava jogada pelo quarto, entre outras coisas, afinal de contas enquanto ele trabalhava duro, o dia todo, ela tinha tempo para cuidar da casa e de si própria, muito mais do que ele.
Essas conversas aconteciam regularmente e, nesses dias, ele dormiam brigados, deixavam pra lá, até que um evento ou uma reforma fizesse com que voltassem a se falar normalmente.

Cin estava ficando tão cansada, mas tão cansada que de repente, notou que talvez nem fosse tão feliz assim.
O palácio era lindo, ela mesma era linda, mas estava engordando sem saber porquê. O príncipe era lindíssimo, mas estava voltando tão tarde que mal se viam a noite, de maneira que as gordurinhas extras que ela acumulava na barriga, nem poderiam ser conquência de uma gravidez.
Quando se falavam na hora do almoço, ou no meio do dia, era sempre porque Cin precisava de alguma ação extraordinária no palácio, da qual o Prin sempre reclamava, dizia que não precisava nada, que os negócios não iam bem, os plebeus agora eram sindicalizados, causavam problemas, faziam até passeatas, ele dizia nervoso...
A sogra era definitivamente uma chata e as sua madrasta e meias-irmãs eram as únicas amigas que Cin tinha, apesar de quase ter que vê-las escondido, tamanho o aborrecimento que o príncipe lhe causava cada vez que sabia de suas visitas.
Quando saia para ir as compras, o príncipe agora reclamava dizendo que ela não precisava de mais um sapato e Cin passou a esconder o que comprava e fazer várias manobras elaboradas para que o prin não desse falta do dinheiro. Cin também escondia quando o pé estava com bolhas e, quando Prin começava a apertá-la mais forte, a noite, ela se apressava em dar uma roncadinha para que ele pensasse que ela já estava dormindo.
Um dia, Cin acordou e, quando viu o Prin, o achou bobo, meio bocó mesmo. Aquela roupa toda rococó, a peruca branca. Nada lhe caia bem como antigamente.
Assim, naquela manhã, Cin quando ele a beijou, já na porta do palácio, esse era o primeiro beijo sem amor dos dois e, algo estranho aconteceu. Cin notou uma luz forte, uma faísca nascendo entre a boca dos dois e, de repente, um estrondo! O princípe desaparecerá! Ela ouviu um barulho, olhou para o chão, e lá estava ele, transformado num horroroso sapo, com a coroa de ouro caída ao lado! Antes que Cin desse um grito de horror, o sapo saiu saltitante. Ali, sozinha, paralisada diante do fato, Cin foi se acalmando. Abaixou, pegou a coroa e saiu de lá.
Logo, alguns meses depois, Cin inaugurou a primeira filial da LimPalácios cia limitada. A empresa fez sucesso tercerizando a mão de obra de limpeza de palácios diversos, em um ano, já acumulava 7 dos maiores palácios da região na sua carteira de clientes. Cin se tornou uma executiva de sucesso e foi feliz para sempre. Ah, a coroa? Ela mandou derreter e fez um lindo colar de ouro amarelo...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

De forças

Cleide era casada há 8 anos. Sofria e se cansava da vida ao lado de Sérgio. Depois de muitas tentativas, algumas noites de solidão e ela se separou.
Sergio, a contragosto, deixou a casa onde viveram por tantos anos, numa noite de sexta. E, naquele dia, não doeu.
Ela se sentia cansada, estressada, e um pouco enjoada. Deitou-se e dormiu abraçada à filha, depois de explicar-lhe tudo conforme convinha.
Os dias se passaram mais amenos. Sem gritos, sem desgastes ou acusações. Ela sentia-se livre e independente. Passeou por parques, teatros e restaurantes exibindo a mão nua, sem grades e amarras. Quase um mês se passou até que Cleide sentisse a falta de seu ex-marido.
Foi numa quarta. Ela estava entrando no banho, já despida, quando ligou o chuveiro e notou que a água não esquentava. Passaram-se alguns minutos, e nada acontecia. “Queimou”, ela disse pra si mesma, já pegando a toalha.
"Tudo bem, basta trocar alguma coisa lá dentro. Tenho o material aqui." Ela pegou um banquinho de madeira e subiu. Tinha algo para desrosquear, seria fácil.
Cleide tentou tirar aquela parte, para abrir o chuveiro. Virou com força para esquerda, se equilibrando sobre o velho banquinho de madeira. Estava duro, e quanto mais força ela fazia, só sentia arder a mão. Deisitiu um pouco. Sentou-se no banquinho. Procurou pela casa algum papel com intruções. Não achou. Droga. Então, não restava outra alternativa: o Sérgio. Ele fizera isso mais de uma vez, conhecia tudo da parte elétrica, explicaria por telefone mesmo em questão de minutos. Cleide discou, ainda de toalha:
- Alô
- Oi Sérgio, sou eu a Cleide, tudo bem?
- Tudo - Ele respondeu seco - Mas quem se importava?
- Sergió, aquele negócio do chuveiro, lembra? Que aconteceu aquele dia, quando a gente ia no casamento do Fausto?
- Não. - Ele lembrava, ela tinha certeza.
- Ah Sergio, de não esquentar, só fica frio, pô.
- Ah sei. Que que tem?
- Então, aconteceu de novo.
- E?
- Ué, e que tá duro o lugar de desrosquear. Eu tô na duvida se tá certo...
- Ah é assim mesmo. Esse negócio de desrosquear é duro mesmo.
- É? – Ela respondeu sem graça.
- Mas põe força lá que vc consegue.

Cleide desligou. Voltou ao banheiro, posicionou o banquinho, e teve uma vontadezinha de chorar. Fez uma força enorme, sentia queimar a palma da mão e nada.
- Isso não é vida - ela dizia a si mesma, uma ou duas lágrimas teimaram em cair.
- Viver assim, sem ninguém, pra me ajudar nos momentos difíceis, porra. - E chorou mais.
- Quer saber? Eu vou consertar essa merda, nem que estoure a caixa d'água do bairro todo.
Ajeitou-se no banquinho, e, usando de toda sua raiva, urrou de força quando conseguiu girar a tampa.
Um tanto de foligem caiu em seu rosto. Ela desceu, tentou se limpar, pegou um manual para trocar a mola, e subiu de novo. Quanto mais mexia, mais foligem era derramada sem piedade por todo o lugar.
E assim, com o corpo sujo, segurando o manual em uma mão, as peças na outra, aos prantos, Cleide trocou pela primeira vez a força do chuveiro.
Ou a sua própria força, não se sabe ao certo.
Tomou um banho quente, limpou o banheiro e, ao invés de sair conforme planejara, adormeceu cansada, pensando que talvez - apenas talvez - a vida de solteira não fosse tão boa assim, e, de fato, os dias não foram mais tão agradáveis, ainda que o banheiro funcionasse sozinho e tudo estivesse em ordem. Uma dose de realidade apoderou-se de Cleide e ela passou a lembrar-se, com mais afinco, do seu tempo de amor ao lado do ex-marido. Lembrava-se do arrepio de amor que sentia pelo Sergio no início. Lembrava-se de sua barriga gelando, cada vez que iam se encontrar. Lembrou-se, mas ainda preferiu a solteirice. E, rindo de si mesma, constatou que, hoje, ainda sente arrepio e um frio no estômago. Não mais pelo marido, mas por si mesma, cada vez que a água do chuveiro leva mais de 5 segundo para esquentar e ela olha, assustada, para a força do chuveiro e para a sua própria.

Petit Gateou

Marcia estava sentada no chão do seu quarto, entre fotos. Aos prantos.
Ela acabara de terminar um namoro longo e lindo e chorava sobre papéis velhos, fotos, envelopes, ingressos de cinemas, guardanapos, porta-copos, meu Deus quanta coisa Marcia guardara de seus dois anos de amor.
Ela se sentia abolutamente infeliz, desolada, a mulher mais miserável do universo, porque tinha sido deixada por um homem a quem dera tudo de si.
Marcia e Eduardo haviam sido tão felizes... Tinham feito tantas promessas de amor eterno, combinaram casamento, filhos, viagens. Combinaram até outras vidas, tudo o que ainda fariam juntos. Mas foi cedo, muito cedo que Eduardo desistira de Marcia e ela, então, passou a odiá-lo.
Odiava, certamente, de tanto amar.
E odiava porque, no fundo, ela sabia que não consegui perdoá-lo.
Não que ele pedisse, ele não fazia a menor questão, mas Marcia sim. Marcia precisava perdoá-lo, porque não conseguiria viver com esse peso.
Desejava mais ainda mais do que perdão. Desejava esquecer. Desejava um esquecimento longo e profundo, como os velhos têm de algumas coisas. Queria esquecê-lo, como se esquecia das chaves, do celular, da senha do banco. Esquecê-lo enfim. E, se um dia dissessem dele, ela forçaria a memória para achá-lo dentro de si, em alguns de seus porões mais escuros...
Mas Marcia sabia que esquecer não seria possível, e tentava, arduamente, perdoá-lo.
Perdoar Eduardo por ele não a amar tanto quanto ela achava que merecia. Ou – pior - perdoá-lo, porque ele não amava nada. Nem mesmo menos do que Marcia merecia... Simplesmente não a amava. Como era possível?
Ela se esforçou tanto para ser o melhor pra ele, usou o seu melhor sorriso, suas roupas mais sexys, suas palavras mais bonitas, seus dias mais especiais entregou a ele, de bandeja, mas ele, ah, ele não a escolheu. Como perdoá-lo então?
Ele a conquistou, a levou pela mão, teve-a em seus braços, conheceu suas dores e todos os seus amores, mas não a escolheu.
Como não desejar a prisão perpétua para esse homem?
As pessoas, dizem, não se arrependem. As vezes até proclamam por aí que, embora tenham terminado, valeu a pena... Ah, mas é porque ainda não doeu a dor do frio. É porque ainda não chegou até a carne, é porque o amor, não foi assim tão doce, terno e quente, como foi o de Marcia.
Marcia sentia um frio tão forte, que não poderia deixar de se arrepender. Se arrependia das noites mais bonitas, de cada confissão, de cada entrega, de cada brigadeiro que guardou para ele. Apesar de todas as alegrias e aprendizados que ele lhe deu, o desamor era cruel e rude como só os grandes tiranos conseguem ser.
Portanto, se arrependia. Se arrependia, e muito. Se arrependia do amor porque o desamor era frio demais.
Sozinha, calada entre as recordações de um amor encantado, ela murmurava para si própria: Poxa, ele tinha alguma responsabilidade sobre mim... Tinha a obrigação de estar aqui sim, passando cartão que fosse, ouvindo minhas lamúrias, fazendo cafuné ainda. Ele tinha obrigação de ter me amado, me querido, porque afinal de contas eu me entreguei a ele e isso tem um preço, não pode sair por aí sem pagar não, dando calote. Eu não fiz fiado. Se você comprar uma geladeira e não pagar, vai preso. Agora se você promete algumas coisas em troca de amor eterno, vai lá, recebe o que pediu, leva até pra casa e depois não paga nada, sai andando sem que os guardas o parem. Onde há justiça nesse mundo!?
Marcia desejava que houvesse alguma espécie de justiça no mundo. Senão a de Deus, a dos homens. Que os policiais o prendessem. Que ele fosse proibido de trafegar por aí, livremente, ainda mais de conquistar outras pessoas. Como a legislação não previa isso? Permite que alguém venha, te conquiste, te ganhe e depois esteja com outra, fazendo tudo igual. Marcia tinha descoberto recentemente que Eduardo já estava de caso com alguém. Era reincidente e, apesar disso, nada acontecia a ele.
Ela preferia nunca ter descoberto que dessa nova namorada.
Quando a contaram, ela estava sentada numa mesa de ferro, em um aniversário de uma amiga e fingiu que não ligou. Ninguém soube. Ninguém notou o que quebrara ali, quando disseram: O Du tá namorando...
Foi como um vidro que estilhaça no chão, e corta tudo. Não se pode mover por uns instantes. Marcia prendeu a respiração, fingiu que engasgou com a comida e sorriu gentil, pedindo mais um gole de coca. "Quem se importa?" disse rápido, enquanto os vidros estilhaçam o que ainda havia dentro dela.
Quem será ela? Marcia perguntou dentro de si, naquele instante. Será que ela sabe? Será que ela sonha com um amor assim? Pensou, sem querer pensar.
Será que ela pensa que talvez ele seja mais do que isso?
Será que ela é loira, ou morena e tem cabelos mais lisos que o meu, e marcas de biquini como ele sonhava, e peitos maiores?
Marcia se martirizava com as dúvidas enquanto dava dois beijinhos nos colegas, se despedindo.
No carro, já entre lágrimas, as perguntas continuavam:
E o que ela vê nele? Será que ela conhece os sonhos de vida que ele tem? Será que ela repara que ele tem meia-lua em todas as unhas da mão? Será que ela notou que ele aperta os olhos pra assistir tv, mesmo se está de óculos? Será que ela observa que quando ele dorme respira abrindo um centímetro de boca? Às vezes o canto, às vezes o meio...
E será que ela ama? Deve amar, do contrário, como suportaria?
Supostamente, se estão juntos, ela suporta. Suporta os longos silêncios no telefone, suporta o cheiro do cigarro, suporta o riso estridente dos amigos, os olhares convidativos das amigas, suporta a vida que Marcia não suportou....
Marcia morria um pouco com seus próprios pensamento. Morria um pouco, de pensar que a outra suporta. Morria, quase tudo, de pensar que ela nem precisa suportar. Que talvez, ele não fosse assim com ela. Quem sabe, com a nova namorada ele é atencioso, carinhoso, gentil? Quem sabe com ela, ele é como eu desejei?
Marcia tinha a sensação de que houve uma entrega errada. Ela era quem suportava o Du o tempo todo. Ela foi quem o amou, cuidou dele quando ele teve gripe, ela fez chá de boldo pra ele, aturou a família dele, investigou o que ele mais queria de aniversário e, agora, a outra que recebia o bom rapaz?? Isso não estava certo, era um erro do universo. Os corrêios, certamente, não errariam de forma tão grotesca.
Já em casa, entre as fotos, Marcia chorava enquanto rasgava tudo. Rasgou as fotos - com dor - rasgou os bilhetes. Parou um pouco naquela carta que ele tinha entregue no restaurante, quando comemoraram um ano. Marcia se lembrou do dia.
Estava com seu vestido mais bonito, jantaram sorridentes, ela tinha pedido uma sobremesa deliciosa. Um fotógrafo da casa, inclusive, pediu se poderia tirar uma foto do casal e a foto foi parar no mural do restaurante. Os dois de mãos dadas, olhando pra câmera. Marcia sempre se lembrava dessa noite com saudades. E sempre desejava que a foto deles ainda estivesse lá...
Rasgou tudo, com força. Jogou tudo fora e, quando terminou, já era madrugada. De súbito, sem pensar muito, levantou-se. Assoou o nariz, pegou a chave do carro e saiu, ainda os prantos. Dirigia pelas ruas sem trânsito de São Paulo. Ela não sabia bem o que estava fazendo, mas, quando chegou no restaurante não titubeou. Bateu na porta, que estava trancada. Um garço sujo atendeu e disse que tinham encerrado, estavam limpando o salão. A menina, com uma caixa de papel klenex na mão e o rosto inchado não disse nada. Entrou, passando por cima do garçom que ficou paralisado, assistindo a cena. Ela se dirigiu ao mural, e, em segundos, achou a foto ali. Os dois sorridentes, olhando para a câmera, as mãos dadas sobre a toalha branca da mesa. Nos pratos, resto de doces. Ela pegou a foto e olhou bem de perto. Ele pediu mamão, e ela petit gateou. Olhou as outras fotos. Os casais pediam sempre uma única sobremesa. Na foto ao lado, um prato e duas colheres sobre a mesa. Certamente esses ainda estão juntos, pensou Marcia. Mas ela e Du... Eles não. Ele seria incapaz de dividir com ela uma sobremesa. Não dividiria nunca uma casa, uma família, uma vida toda. Marcia teve um momento de lucidez, quando o garçom chegou pedindo que ela se retirasse. Ela não respondeu. O homem, assustado, perguntou se estava tudo bem. Marcia respirou fundo, olhou em volta, viu as cadeiras sobre as mesas, um outro senhor limpando o chão, e perguntou se a cozinha ainda estava aberta. O garçom, já se compadecendo da moça, disse que não, mas que podia pegar um copo d’agua se ela quissesse. Ela negou. Falou que não estava com sede, mas que queria um petit gateou. O homem se espantou, ficou sem-graça e tentou dissuadí-la da idéia, sem sucesso. Marcia, quase refeita, convenceu o garçom a, pelo menos tentar. E assim, em 10 minutos, Marcia comia um petit gateou, sozinha, num restaurante vazio. Antes de dar a colherada final, olhou pra foto e viu-se ali, de mãos dadas com o ex, sorrindo, feliz. Olhou bem, e, de repente, notou que era uma mulher solitária, também com o Du. Não havia nenhuma diferença entre o petit gateou da foto e o dela. Achou, inclusive, que o dela estava melhor. Enxugou uma última lágrima, raspou a caldinha de chocolate e, já sem dor, rasgou mais essa foto. Antes de sair, deu um abraço no garçom, que ainda em choque, lhe agradeceu a presença. No carro, Marcia aumentou o volume do rádio, e, cantarolando, pensou o quão impressionante podia ser o efeito de um petit gateou, sobre uma mulher.

Desencontros

Ela estava ansiosa pelo encontro. Tinha pensado nele com tanto afinco, que já quase apostara suas fichas no fato de ele ser o homem da sua vida.
Haviam se visto uma vez, apenas, mas pareciam feitos um para o outro.
E então que ela foi, de saia e blusa fechada, pra demonstrar equilíbrio. Chegou no restaurante e já o avistou na mesa, esperando por ela, com uma estranha combinação de camisa xadrez demais com uma gravata estampada. “Não há de ser nada”, pensou, “roupa a gente tira”.
- Oi
- Oi, demorei?
- Não imagina, eu também acabei de chegar.
- Sei...
- Vamos pedir alguma coisa pra beber?
- Claro, o que você quer?
- Que tal aquela cerveja escura, pra aproveitar que está friozinho?
- Ah...eu não bebo álcool...
- (...)
- Mas pede você, não tem problema, eu vou de Coca.
- Não, não...Eu te acompanho no refri. No problem.
- Refri?
- É refrigerante. Abreviação.
- Não, não claro. Eu tinha entendido, é que... não, nada. No problem também. (risos amarelos seguidos do pedido)
- (...)
- Então, e você trabalha aqui perto né? Já deve ter vindo almoçar aqui?
- Já, já sim. Eu venho andando, porque gosto muito de caminhadas, sabe?
- Sei.
- Você também, gosta de esportes?
- Detesto.
- Puxa...
- Não, não...é que sou um pouco preguiçosa mesmo, mas vou me inscrever na academia semana que vem. Pra me preparar pro verão. A melhor época do ano!
- Nossa você acha? Eu adoro o frio, meu negócio é o inverno.
- Ah tem o lado bom, claro. Dá pra ficar mais tempo em casa, é tão bom ficar em casa né?
- Bom, eu prefiro sair. Quase não fico em casa, acho meio deprê...
- Deprê? Mas você não gosta de curtir um livro, um filme?!
- Livro?! Nossa...não....
- Sei. Podemos pedir o prato né?
- Of course. Aqui tem umas saladas ótimas!
- Of course? Salada? Mas...o tempo, ta tão frio....
- É. Tudo bem.
-(...)
- Vamos fazer assim, você escolhe o teu que eu escolho o meu certo?
- Claro. Melhor assim. Viva as diferenças!
- Yes, viva! - risos amarelos, seguidos dos pedidos.
(...)
- Nossa essa sua Lasanha, parece mesmo apetitosa. Mas vai ter que malhar pra perder as calorias né?
- Hehehe
- Não, não me interprete mal, você está ótima!
- Sei.
- Mas essa minha saladinha também está excelente, é bom que durmo bem sabe?
Gosto de acordar cedo. E você?
- ... Tá frio mesmo né? Até a comida ta esfriando. Melhor comermos mais depressa. Eu, a minha lasanha ao menos....
- Sure.
(...)
- Quer sobremesa?
- Não, obrigada. Estou cansada prefiro ir pra casa.
- É eu também. Tenho que assistir o Jô. Vai ser show de bola hoje.
- Show de bola. Ótimo. Pedimos a conta?
- Sure.
(...)
- Quanto deu? Vamos dividir?
- Aqui já vem o preço por pessoa, olha. Prático não?
- Er...Faço um cheque da minha parte ok?
- Ta bem, e eu pago a saladinha com cartão.
(...)
- Então tchau. Vai com cuidado, que mulher sozinha é muito perigoso.
- É. Muito perigoso mesmo....

Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter

Era um dia de calor em São Paulo, muito trânsito na cidade e o habitual barulho na rua.
Maíra estava chegando ao trabalho e, embora estivesse adiantada, andava depressa rumo à sala de reunião onde apresentaria seu trabalho tão precioso. No entanto, antes que as portas automáticas se abrissem na entrada do grande prédio de vidro onde Maíra trabalhava, ela sentiu-se presa. “Ups” murmurou sem saber porque não avançava, algo tinha acontecido no seu pé. Olhou para baixo e logo notou, o seu salto enganchara no ralinho do chão e ela estava agora, entre sair, descalça, ou abaixar-se pra tirar o sapato do ralo. Escolheu a segunda opção, deixou os papéis e o computador no chão e usou as duas mãos para soltar seu lindo escarpan do ralo imundo ao qual se prendera. Demorou um pouco, a saia estava justa, a meia-calça ameaçou romper-se quando...”ai!” saiu... Ela se refez do calor, calçou o sapato, pegou as coisas, olhou em volta pra que confirmar que ninguém a vira, e seguiu pra confortável sala de reunião onde o frio reinava soberano, ignorando o calor de 30 e poucos graus de São Paulo.
Maíra ligou o computador, conectou a ele o canhão, checou que a imagem estava boa, respirou fundo, e antes que pudesse notar que ainda estava ofegante, a primeira pessoa chegou. “Hi, how are you?”, as duas moças jovens e elegantes cumprimentaram-se cordialmente, enquanto outras pessoas iam chegando, sendo apresentadas à Maíra e se acomodando em seus lugares, abrindo as garrafas de água, ou servindo-se do coffe-break. Maíra desejou que elas fossem pessoas boas, ao menos. Podiam ser burras, tontas, lindas, horrorosas, importantes ou não, mas que fossem pessoas boas para que respeitassem as dificuldades que Maíra pudesse ter, numa apresentação de tanta importância, em uma língua nova, com tantas culturas diferentes.
Não demorou muito para que a mesa de mármore estivesse cheia, todos em silêncio, ouvindo a moça falar, no seu melhor inglês, sobre o projeto que gerenciava com tanto empenho, ainda que sem paixão.
Enquanto falava, Maíra pensava no quanto era importante e competente, para ocupar tão cedo aquele posto, dissertar tão lindamente para tantas pessoas, Maíra estava envaidecida por demais, até para notar se o que dizia tinha sentido ou não. No entanto, uma das inglesas a trouxe para realidade: “I don`t agree with you. This is not possible in this company...” A senhora de azul disse, de forma agressiva e brusca, discordando de Maíra e expondo a fragilidade de seu inglês. Maíra tentou explicar, explicou até, uma ou duas vezes, antes de ser interrompida de novo. Mais alguém que não acreditava nesse trabalho e questionava o que essa jovem brasileira de rosto tão liso e cabelos tão negros teria a ensinar para esses homens e mulheres que vinham do primeiro mundo em busca de preços baixos apenas... Maíra respondeu, engasgou no meio da frase, não conseguiu continuar o raciocínio em inglês, falou singular o que deveria ter sido plural, ai, ou teria sido a preposição eu não era essa? As pessoas tentaram falar no lugar dela, e uma confusão se instalou. Maíra tentou sugerir um intervalo, mas alguém tomou o seu lugar e começou a tentar explicar os objetivos dessa reunião. Resolveram apresentar o material até o final e depois teríamos as dúvidas. Maíra o fez, já sem vontade, já cansada, já notando mais uma vez, o que sempre soube, aquele não era o seu lugar. Ou era? Enquanto pensava uma outra pessoa falava em nome do Brasil, tentando acalmar a situação.
Foi nesse momento, quando Maíra ainda buscava acreditar que tudo voltaria ao normal, afinal ela era uma executiva de tanto sucesso e competência, que entrou na sala três pessoas, de branco, carregando as bandejas para renovar o coffe-break. Eram duas mulheres carregando as frutas, e um homem que carregava as jarras de café e de chá, eles entraram rindo de qualquer coisa, falando baixo sobre alguma coisa que acontecerá no elevador, mas ficaram sérios quando perceberam que a jovem executiva os olhava atenta. Ficaram sérios um segundo, até que algum deles riu baixinho e contagiou os outros dois. Os três garçons riram abafado, puseram suas bandejas na bancada e, se trombaram, riram mais e, logo que saíram, Maíra ainda ouviu a explosão de risada que houve, imediatamente após a porta ter se fechado...
A reunião continuava mas, Maíra, que já estava sentada, não conseguiu mais prestar atenção nos slides que ela mesma prepara noite adentro, nas últimas semanas. Maíra, a executiva bem sucedida, que ganhava bem e vestia-se com as melhores roupas, invejou aqueles garçons. Desejou, de repente, que pudesse ser apenas uma garçonete, que pudesse usar tênis, vestir aquelas redinhas no cabelo, levar comida para os lugares, roubar uma ou duas calipsos, rir com os seus colegas de trabalho e ganhar mal. Sim, ganhar pouco e estressar-se pouco, era isso que Maíra queria, se alguém fizesse a ela essa proposta.
Mas não, não era nesse mundo que ela vivia... Era preciso estressar-se, gritar, insistir, persistir tanto, para que as empresas ricas ficassem ainda mais ricas e que os funcionários pobres ficassem ainda mais pobres... Era essa, basicamente, o trabalho nobre a que Maíra dedicava sua juventude, seus dias de verão e de inverno. Alguém a chamou: “Maíra”, disseram com o forte sotaque americano, “claro!”, ela se dispôs, levantou-se, ajeitou-se e respondeu polidamente, demonstrando com muita competência ser aquilo que ela nunca, nunca seria...