quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Petit Gateou

Marcia estava sentada no chão do seu quarto, entre fotos. Aos prantos.
Ela acabara de terminar um namoro longo e lindo e chorava sobre papéis velhos, fotos, envelopes, ingressos de cinemas, guardanapos, porta-copos, meu Deus quanta coisa Marcia guardara de seus dois anos de amor.
Ela se sentia abolutamente infeliz, desolada, a mulher mais miserável do universo, porque tinha sido deixada por um homem a quem dera tudo de si.
Marcia e Eduardo haviam sido tão felizes... Tinham feito tantas promessas de amor eterno, combinaram casamento, filhos, viagens. Combinaram até outras vidas, tudo o que ainda fariam juntos. Mas foi cedo, muito cedo que Eduardo desistira de Marcia e ela, então, passou a odiá-lo.
Odiava, certamente, de tanto amar.
E odiava porque, no fundo, ela sabia que não consegui perdoá-lo.
Não que ele pedisse, ele não fazia a menor questão, mas Marcia sim. Marcia precisava perdoá-lo, porque não conseguiria viver com esse peso.
Desejava mais ainda mais do que perdão. Desejava esquecer. Desejava um esquecimento longo e profundo, como os velhos têm de algumas coisas. Queria esquecê-lo, como se esquecia das chaves, do celular, da senha do banco. Esquecê-lo enfim. E, se um dia dissessem dele, ela forçaria a memória para achá-lo dentro de si, em alguns de seus porões mais escuros...
Mas Marcia sabia que esquecer não seria possível, e tentava, arduamente, perdoá-lo.
Perdoar Eduardo por ele não a amar tanto quanto ela achava que merecia. Ou – pior - perdoá-lo, porque ele não amava nada. Nem mesmo menos do que Marcia merecia... Simplesmente não a amava. Como era possível?
Ela se esforçou tanto para ser o melhor pra ele, usou o seu melhor sorriso, suas roupas mais sexys, suas palavras mais bonitas, seus dias mais especiais entregou a ele, de bandeja, mas ele, ah, ele não a escolheu. Como perdoá-lo então?
Ele a conquistou, a levou pela mão, teve-a em seus braços, conheceu suas dores e todos os seus amores, mas não a escolheu.
Como não desejar a prisão perpétua para esse homem?
As pessoas, dizem, não se arrependem. As vezes até proclamam por aí que, embora tenham terminado, valeu a pena... Ah, mas é porque ainda não doeu a dor do frio. É porque ainda não chegou até a carne, é porque o amor, não foi assim tão doce, terno e quente, como foi o de Marcia.
Marcia sentia um frio tão forte, que não poderia deixar de se arrepender. Se arrependia das noites mais bonitas, de cada confissão, de cada entrega, de cada brigadeiro que guardou para ele. Apesar de todas as alegrias e aprendizados que ele lhe deu, o desamor era cruel e rude como só os grandes tiranos conseguem ser.
Portanto, se arrependia. Se arrependia, e muito. Se arrependia do amor porque o desamor era frio demais.
Sozinha, calada entre as recordações de um amor encantado, ela murmurava para si própria: Poxa, ele tinha alguma responsabilidade sobre mim... Tinha a obrigação de estar aqui sim, passando cartão que fosse, ouvindo minhas lamúrias, fazendo cafuné ainda. Ele tinha obrigação de ter me amado, me querido, porque afinal de contas eu me entreguei a ele e isso tem um preço, não pode sair por aí sem pagar não, dando calote. Eu não fiz fiado. Se você comprar uma geladeira e não pagar, vai preso. Agora se você promete algumas coisas em troca de amor eterno, vai lá, recebe o que pediu, leva até pra casa e depois não paga nada, sai andando sem que os guardas o parem. Onde há justiça nesse mundo!?
Marcia desejava que houvesse alguma espécie de justiça no mundo. Senão a de Deus, a dos homens. Que os policiais o prendessem. Que ele fosse proibido de trafegar por aí, livremente, ainda mais de conquistar outras pessoas. Como a legislação não previa isso? Permite que alguém venha, te conquiste, te ganhe e depois esteja com outra, fazendo tudo igual. Marcia tinha descoberto recentemente que Eduardo já estava de caso com alguém. Era reincidente e, apesar disso, nada acontecia a ele.
Ela preferia nunca ter descoberto que dessa nova namorada.
Quando a contaram, ela estava sentada numa mesa de ferro, em um aniversário de uma amiga e fingiu que não ligou. Ninguém soube. Ninguém notou o que quebrara ali, quando disseram: O Du tá namorando...
Foi como um vidro que estilhaça no chão, e corta tudo. Não se pode mover por uns instantes. Marcia prendeu a respiração, fingiu que engasgou com a comida e sorriu gentil, pedindo mais um gole de coca. "Quem se importa?" disse rápido, enquanto os vidros estilhaçam o que ainda havia dentro dela.
Quem será ela? Marcia perguntou dentro de si, naquele instante. Será que ela sabe? Será que ela sonha com um amor assim? Pensou, sem querer pensar.
Será que ela pensa que talvez ele seja mais do que isso?
Será que ela é loira, ou morena e tem cabelos mais lisos que o meu, e marcas de biquini como ele sonhava, e peitos maiores?
Marcia se martirizava com as dúvidas enquanto dava dois beijinhos nos colegas, se despedindo.
No carro, já entre lágrimas, as perguntas continuavam:
E o que ela vê nele? Será que ela conhece os sonhos de vida que ele tem? Será que ela repara que ele tem meia-lua em todas as unhas da mão? Será que ela notou que ele aperta os olhos pra assistir tv, mesmo se está de óculos? Será que ela observa que quando ele dorme respira abrindo um centímetro de boca? Às vezes o canto, às vezes o meio...
E será que ela ama? Deve amar, do contrário, como suportaria?
Supostamente, se estão juntos, ela suporta. Suporta os longos silêncios no telefone, suporta o cheiro do cigarro, suporta o riso estridente dos amigos, os olhares convidativos das amigas, suporta a vida que Marcia não suportou....
Marcia morria um pouco com seus próprios pensamento. Morria um pouco, de pensar que a outra suporta. Morria, quase tudo, de pensar que ela nem precisa suportar. Que talvez, ele não fosse assim com ela. Quem sabe, com a nova namorada ele é atencioso, carinhoso, gentil? Quem sabe com ela, ele é como eu desejei?
Marcia tinha a sensação de que houve uma entrega errada. Ela era quem suportava o Du o tempo todo. Ela foi quem o amou, cuidou dele quando ele teve gripe, ela fez chá de boldo pra ele, aturou a família dele, investigou o que ele mais queria de aniversário e, agora, a outra que recebia o bom rapaz?? Isso não estava certo, era um erro do universo. Os corrêios, certamente, não errariam de forma tão grotesca.
Já em casa, entre as fotos, Marcia chorava enquanto rasgava tudo. Rasgou as fotos - com dor - rasgou os bilhetes. Parou um pouco naquela carta que ele tinha entregue no restaurante, quando comemoraram um ano. Marcia se lembrou do dia.
Estava com seu vestido mais bonito, jantaram sorridentes, ela tinha pedido uma sobremesa deliciosa. Um fotógrafo da casa, inclusive, pediu se poderia tirar uma foto do casal e a foto foi parar no mural do restaurante. Os dois de mãos dadas, olhando pra câmera. Marcia sempre se lembrava dessa noite com saudades. E sempre desejava que a foto deles ainda estivesse lá...
Rasgou tudo, com força. Jogou tudo fora e, quando terminou, já era madrugada. De súbito, sem pensar muito, levantou-se. Assoou o nariz, pegou a chave do carro e saiu, ainda os prantos. Dirigia pelas ruas sem trânsito de São Paulo. Ela não sabia bem o que estava fazendo, mas, quando chegou no restaurante não titubeou. Bateu na porta, que estava trancada. Um garço sujo atendeu e disse que tinham encerrado, estavam limpando o salão. A menina, com uma caixa de papel klenex na mão e o rosto inchado não disse nada. Entrou, passando por cima do garçom que ficou paralisado, assistindo a cena. Ela se dirigiu ao mural, e, em segundos, achou a foto ali. Os dois sorridentes, olhando para a câmera, as mãos dadas sobre a toalha branca da mesa. Nos pratos, resto de doces. Ela pegou a foto e olhou bem de perto. Ele pediu mamão, e ela petit gateou. Olhou as outras fotos. Os casais pediam sempre uma única sobremesa. Na foto ao lado, um prato e duas colheres sobre a mesa. Certamente esses ainda estão juntos, pensou Marcia. Mas ela e Du... Eles não. Ele seria incapaz de dividir com ela uma sobremesa. Não dividiria nunca uma casa, uma família, uma vida toda. Marcia teve um momento de lucidez, quando o garçom chegou pedindo que ela se retirasse. Ela não respondeu. O homem, assustado, perguntou se estava tudo bem. Marcia respirou fundo, olhou em volta, viu as cadeiras sobre as mesas, um outro senhor limpando o chão, e perguntou se a cozinha ainda estava aberta. O garçom, já se compadecendo da moça, disse que não, mas que podia pegar um copo d’agua se ela quissesse. Ela negou. Falou que não estava com sede, mas que queria um petit gateou. O homem se espantou, ficou sem-graça e tentou dissuadí-la da idéia, sem sucesso. Marcia, quase refeita, convenceu o garçom a, pelo menos tentar. E assim, em 10 minutos, Marcia comia um petit gateou, sozinha, num restaurante vazio. Antes de dar a colherada final, olhou pra foto e viu-se ali, de mãos dadas com o ex, sorrindo, feliz. Olhou bem, e, de repente, notou que era uma mulher solitária, também com o Du. Não havia nenhuma diferença entre o petit gateou da foto e o dela. Achou, inclusive, que o dela estava melhor. Enxugou uma última lágrima, raspou a caldinha de chocolate e, já sem dor, rasgou mais essa foto. Antes de sair, deu um abraço no garçom, que ainda em choque, lhe agradeceu a presença. No carro, Marcia aumentou o volume do rádio, e, cantarolando, pensou o quão impressionante podia ser o efeito de um petit gateou, sobre uma mulher.

Nenhum comentário: