quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

De forças

Cleide era casada há 8 anos. Sofria e se cansava da vida ao lado de Sérgio. Depois de muitas tentativas, algumas noites de solidão e ela se separou.
Sergio, a contragosto, deixou a casa onde viveram por tantos anos, numa noite de sexta. E, naquele dia, não doeu.
Ela se sentia cansada, estressada, e um pouco enjoada. Deitou-se e dormiu abraçada à filha, depois de explicar-lhe tudo conforme convinha.
Os dias se passaram mais amenos. Sem gritos, sem desgastes ou acusações. Ela sentia-se livre e independente. Passeou por parques, teatros e restaurantes exibindo a mão nua, sem grades e amarras. Quase um mês se passou até que Cleide sentisse a falta de seu ex-marido.
Foi numa quarta. Ela estava entrando no banho, já despida, quando ligou o chuveiro e notou que a água não esquentava. Passaram-se alguns minutos, e nada acontecia. “Queimou”, ela disse pra si mesma, já pegando a toalha.
"Tudo bem, basta trocar alguma coisa lá dentro. Tenho o material aqui." Ela pegou um banquinho de madeira e subiu. Tinha algo para desrosquear, seria fácil.
Cleide tentou tirar aquela parte, para abrir o chuveiro. Virou com força para esquerda, se equilibrando sobre o velho banquinho de madeira. Estava duro, e quanto mais força ela fazia, só sentia arder a mão. Deisitiu um pouco. Sentou-se no banquinho. Procurou pela casa algum papel com intruções. Não achou. Droga. Então, não restava outra alternativa: o Sérgio. Ele fizera isso mais de uma vez, conhecia tudo da parte elétrica, explicaria por telefone mesmo em questão de minutos. Cleide discou, ainda de toalha:
- Alô
- Oi Sérgio, sou eu a Cleide, tudo bem?
- Tudo - Ele respondeu seco - Mas quem se importava?
- Sergió, aquele negócio do chuveiro, lembra? Que aconteceu aquele dia, quando a gente ia no casamento do Fausto?
- Não. - Ele lembrava, ela tinha certeza.
- Ah Sergio, de não esquentar, só fica frio, pô.
- Ah sei. Que que tem?
- Então, aconteceu de novo.
- E?
- Ué, e que tá duro o lugar de desrosquear. Eu tô na duvida se tá certo...
- Ah é assim mesmo. Esse negócio de desrosquear é duro mesmo.
- É? – Ela respondeu sem graça.
- Mas põe força lá que vc consegue.

Cleide desligou. Voltou ao banheiro, posicionou o banquinho, e teve uma vontadezinha de chorar. Fez uma força enorme, sentia queimar a palma da mão e nada.
- Isso não é vida - ela dizia a si mesma, uma ou duas lágrimas teimaram em cair.
- Viver assim, sem ninguém, pra me ajudar nos momentos difíceis, porra. - E chorou mais.
- Quer saber? Eu vou consertar essa merda, nem que estoure a caixa d'água do bairro todo.
Ajeitou-se no banquinho, e, usando de toda sua raiva, urrou de força quando conseguiu girar a tampa.
Um tanto de foligem caiu em seu rosto. Ela desceu, tentou se limpar, pegou um manual para trocar a mola, e subiu de novo. Quanto mais mexia, mais foligem era derramada sem piedade por todo o lugar.
E assim, com o corpo sujo, segurando o manual em uma mão, as peças na outra, aos prantos, Cleide trocou pela primeira vez a força do chuveiro.
Ou a sua própria força, não se sabe ao certo.
Tomou um banho quente, limpou o banheiro e, ao invés de sair conforme planejara, adormeceu cansada, pensando que talvez - apenas talvez - a vida de solteira não fosse tão boa assim, e, de fato, os dias não foram mais tão agradáveis, ainda que o banheiro funcionasse sozinho e tudo estivesse em ordem. Uma dose de realidade apoderou-se de Cleide e ela passou a lembrar-se, com mais afinco, do seu tempo de amor ao lado do ex-marido. Lembrava-se do arrepio de amor que sentia pelo Sergio no início. Lembrava-se de sua barriga gelando, cada vez que iam se encontrar. Lembrou-se, mas ainda preferiu a solteirice. E, rindo de si mesma, constatou que, hoje, ainda sente arrepio e um frio no estômago. Não mais pelo marido, mas por si mesma, cada vez que a água do chuveiro leva mais de 5 segundo para esquentar e ela olha, assustada, para a força do chuveiro e para a sua própria.

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